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12.01.11 às 5:30

Reflexões sobre ética e responsabilidade

Um mundo novo só será possível por meio da adoção de diferentes valores, que por sua vez motivarão transformações na conduta da sociedade
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Serão a ética e a responsabilidade elementos de um novo paradigma, que vem substituir um outro superado, cujas leis já não satisfazem, não são suficientes para explicar a realidade de fatos observados pelos cientistas? Não se trata disso, apesar de não se poder negar que é crescente a atenção e o espaço em artigos, livros, seminários, conferências em todo o mundo, dedicados ao aprofundamento sobre os temas em questão. Por outro lado, podemos afirmar que já ocorrem transformações de uma parte ainda pequena da sociedade, em diversas partes do mundo, e quase todas as áreas de atuação, que adotam um novo padrão comportamento, pautado por ações impregnadas pelo zelo, respeito e comprometimento com o desenvolvimento humano, com o bem-estar.

Tais movimentos decorrem certamente do inquestionável desgaste e atual fragilidade do nosso modelo de civilização, dominado pela “globalização perversa” (Santos, 2000), que dá sinais claros de insustentabilidade não apenas ecológica ou social, como há anos demonstram inúmeros relatórios, que divulgam índices de degradação que hoje podem ser considerados tradicionais. Paradoxalmente, há novos indicadores de insustentabilidade que dizem respeito ao próprio modelo econômico. Um dos principais aspectos da fragilidade do sistema econômico associa-se ao crescente volume de operações financeiras efetivadas eletronicamente, que impõe riscos ao capitalismo “moderno”, não somente por sua volatilidade, mas também porque a lógica que determina seus movimentos já não é a antiga e única lógica da economia, o mercado.

Temos, portanto sintomas cada vez mais abrangentes e generalizados que evidenciam a gravidade da situação do nosso modelo civilizacional que, desde a Revolução Industrial, insistem em apresentar como aquele que trará progresso e bem-estar a todos. Ao mesmo tempo, são essas mesmas condições de miséria social, riscos à capacidade de suporte do planeta e fragilidade do modelo econômico, que despertam a consciência de um número cada vez maior de pessoas. Estas se indignam e têm a certeza que é preciso reverter esse quadro, e que esse processo somente será possível através da adoção de diferentes valores e crenças, que por sua vez motivarão transformações na conduta da sociedade.

Entre outros valores, a responsabilidade é fundamental para que as transformações desejadas possam ser generalizadas. E pensar na responsabilidade é pensar na ética, como aquele conjunto maior de valores que a compreende. Para pensar sobre ética o primeiro cuidado é estarmos atentos às diferenças existentes entre a ética essencial ou espontânea e a ética moralista, como bem o faz Weill (1993). A primeira, aquela que flui naturalmente, está em cada um, e independe de normas escritas, exige sabedoria e mais do que o uso da razão para nortear nossas ações, uma vez que a razão apenas complementaria as orientações do coração. A segunda, entendida como necessária a todos, enquanto não podemos despertar para a primeira, é um conjunto de normas prontas, padrões de comportamento que são impostos através de pressão social e resultantes da cultura hegemônica. Para Diskin (2000) trata-se de “normas de comportamento que devem ser capazes de assegurar a continuidade do controle e do poder e devem convencer os indivíduos que a obediência a esses códigos é para seu bem, sustentabilidade felicidade e garantia de futuro para si e demias gerações vindouras.”

Capra (2000) considera que a responsabilidade caracteriza um tipo de comportamento do homem, “que flui de um sentimento de pertencimento”. Para isso, continua o autor, é essencial que pertencemos a 2 comunidades: a) a humanidade: que deveria motivar comportamentos que refletissem valores de respeito aos direitos humanos, justiça e dignidade; b) o planeta Terra: como nossa casa motivaria comportamentos semelhantes aos demais habitantes dessa morada, “as plantas, animais e microorganismos, que formam uma vasta estrutura de relações que chamamos rede da vida”, sendo que esta rede, com toda sua diversidade e inter-relações, manteve-se em equilíbrio pelos 3 bilhões de anos anteriores. O comportar-se responsavelmente, pensando em toda a rede, nos garantiria a sustentabilidade em toda a sua abrangência, ou seja, social, ecológica e econômica, por tempo indeterminado.

Encontramos também que a responsabilidade é a “noção humanística ética que só tem sentido para o sujeito consciente” (Morin, 1998). Pensar no sujeito consciente nos remete a outras definições convergentes ou complementares de responsabilidade como “um gesto livre do querer voluntário” (Grajew, 2000); ou ainda do que “tem a ver com o querer, com o desejo das pessoas … com o dar-se conta de que as conseqüências de seus atos são desejáveis” (Maturana, 1999).

Dalai Lama (2000) dedica um capítulo completo para tratar o que denomina “responsabilidade universal”, definindo-a como “a consideração pelo bem-estar do outro; é pensar a dimensão social dos nossos atos e do igual direito de todos à felicidade; é reorientar nossos corações e nossas mentes para os outros; é ter compromisso com a honestidade e com a verdade em tudo que fazemos; liga-se intimamente com a justiça, com a obrigação de agir quando se tem consciência da injustiça”.

É possível e seria desejável ocupar muito mais do que duas laudas no estudo apenas das definições, mas é urgente que pensemos sobre como passamos ao próximo movimento: como despertar as consciências, o desejo e o querer verdadeiro, para conduzir à ação. Para Maturana (1999) isso será possível quando nós nos dermos conta do mundo em que vivemos, e que este mundo tem a ver com cada um, que não somos independentes do meio em que vivemos, tampouco o meio independe de nós. “Os indivíduos em suas interações constituem o social e o social é o meio em que esses indivíduos se realizam como tal” (op.cit.). Mais do que interdependentes trata-se de elementos interconstituintes. Dessa forma, é mais fácil nos compreender enquanto os responsáveis por nossa sociedade e portanto, por nossa cultura, enquanto o conjunto de elementos não materiais que caracterizam uma sociedade, valores éticos e estéticos, ideologia, filosofia, religião, conhecimento teórico. Dado que são elementos dinâmicos, da mesma forma que nós a criamos, somente nós seremos os responsáveis pela transformação da cultura que caracteriza a civilização atual, mais especificamente a ocidental.

Da mesma forma, Herrera (1982) acredita que a evolução cultural é possível quando entendemos que nada pode ser feito sem nosso apoio passivo ou ativo, que nós somos a sociedade, sendo cada um responsável por suas ações, sendo portanto, impossível a violência social sem a nossa colaboração.

Cabe a nós educadores e acadêmicos responsáveis uma parte essencial desta ação concreta, através de uma educação que inclua crescente e constantemente a prática da reflexão sobre a ação e suas conseqüências, sobre si e sobre os outros. Além disso, como nos ensina Santos (2000), nós acadêmicos, através da reflexão crítica devemos virar pelo avesso os processos atuais, para após sua compreensão, podermos revertê-los.

Tanta atenção à necessidade da reflexão e do pensamento crítico, decorre da ausência dessas práticas nas decisões cotidianas de cada um de nós. Acomodados, necessitamos mudar hábitos, atitudes passivas, padrões de pensamentos e comportamentos essencialmente técnicos, racionais. A gravidade desse padrão torna-se absolutamente clara com a explicação de Diskin (2000) no trecho que segue: “… toda escolha carrega uma intenção carregada de valores que na sua maioria não são percebidos conscientemente, estão incrustados na substância de nossos pensamentos a respeito do mundo e de nós mesmos; … constituem a armação de concepções e categorias que não são de nossa própria criação, mas que a sociedade nos entregou já pré-fabricadas e é por onde nosso pensar individual se move, mesmo quando ele é original e ousado”. Novamente Herrera (1982) deve ser lembrado, pois nos dizia que devemos e podemos desobedecer a esta ordem, opondo nossos corpos e mentes a ela.

Dois dos autores mencionados acreditam que a prática responsável da educação, da ciência, ou de qualquer campo de atuação, só é possível pelo amor. Para Maturana (1999), por ser a única emoção que torna possível a convivência que considera o outro como legítimo outro na convivência. E para Herrera (1982), porque será através da detenção da violência, como um ato de fé em nós e nos outros, chegaremos à fraternidade de todos os seres humanos e, assim, seremos capazes de redescobrir o significado do amor, como a base sobre a qual podemos construir uma verdadeira civilização mundial. Então, e somente então, estaremos preparados para a grande jornada.

Rachel Negrão Cavalcanti é professora do Instituto de Geociências da Unicamp

BIBLIOGRAFIA

DISKIN, Lia. Ética: um desafio à desigualdade. In: ESTEVES, Sérgio (org.). O dragão e a borboleta. Sustentabilidade e responsabilidade social nos negócios. São Paulo: Axis Mundi/AMCE, 2000.

GRAJEW, Oded. Negócios e responsabilidade social. In: ESTEVES, Sérgio (org.). O dragão e a borboleta. Sustentabilidade e responsabilidade social nos negócios. São Paulo: Axis Mundi/AMCE, 2000.

HERRERA, Amilcar O. A grande jornada. A crise nuclear e o destino biológico do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. LAMA, Dalai. Uma ética para o novo milênio. 5ª ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.

MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.

WEIL, Pierre. A nova ética. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Ventos, 1998.

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