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28.12.10 às 10:38

Consumidos pelo consumo

Entramos no vício de possuir e nos esquecemos de nos relacionar com aquilo que possuímos, por Rosa Alegria
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Vivemos tempos de redefinições. Valores e conceitos que nos orientaram por mais de três séculos começam a perder o sentido e são reinventados pelo chamado da sobrevivência. O que era antes considerado sucesso, pela competência e eficiência tecnoprodutiva, hoje vai para a berlinda. Vemos destruídas as nossas ilusões de viver para trabalhar, ganhar e consumir. Consumimos tanto que estamos sendo consumidos pelo excesso, aquele que polui nossas vidas e se transforma em lixo psíquico. Entramos no vício de possuir e nos esquecemos de nos relacionar com aquilo que possuímos. Perdemos a capacidade de contato com o que possuímos, como afirma o filósofo da comunicação Evandro Ouriques, e passamos a querer cada vez mais, sem mesmo sentir ou tocar aquilo que nos pertence. Promovemos o crescimento e fomos tragados por ele. Hoje a riqueza se redefine: é segurança, saúde, tempo para se divertir e conviver, sentir o cheiro da grama molhada, apreciar a riqueza das coisas mais simples, descomplicar.

Estamos buscando resgatar os sentidos em tudo o que fazemos. Nossa inteligência está sendo testada pela própria capacidade sapiente que temos de sobreviver. Fomos seduzidos pela idéia de que ser alguém na vida é ganhar. Suprimimos a força essencial de sermos alguém para a vida. Fomos enganados, nos enganamos. De tanto querer produzir, ganhar e acumular, nos vemos diante da ameaça de não termos mais água para beber, ar puro para respirar e recursos naturais para se alimentar com segurança. Na ordem psico-social, o deslocamento de quem possui daquilo que é pertencido é responsável por doenças pós-modernas já catalogadas, como, por exemplo, a neofilia, a compulsão insaciável pelo novo, e o infostress, colapso mental provocado pelo excesso de informação.

Pesquisas recentes revelam que 45% das crianças, principalmente as meninas, têm como principal preocupação a estética, o culto ao corpo e o medo de engordar. A segurança está em primeiro lugar (72%) na lista das preocupações infantis, o medo tomou o lugar da fantasia.

Em apenas 50 anos, a economia global cresceu cinco vezes. O consumo de água, grãos e carne triplicou, o consumo de papel aumentou seis vezes. Segundo os últimos relatórios do IPCC (International Panel on Climate Change), a emissão de gases provenientes de combustíveis fósseis e a emissão de carbono têm se multiplicado num ritmo assustador. O consumo per capita no mundo cresceu 3% ao ano durante os últimos 25 anos. É razoável supor que, se não houver uma mudança de consciência nessa passagem civilizatória, no futuro as pessoas tenderão a incrementar o seu índice de consumo.

Diante dessa crise de valores e atitudes, direitos humanos dão lugar a responsabilidades humanas – com destaque para a mais completa declaração de amor ao planeta, a Carta da Terra, cujo texto foi inspirado pela Eco 92, realizada no Rio de Janeiro.

Assistimos a uma colisão entre os valores remanescentes da Revolução Industrial – o uso irrestrito da tecnologia na exploração de recursos naturais para o rápido crescimento da produção – e os recursos limitados da biosfera. Esse conflito de meios e fins está dando lugar a um sistema de valores e crenças totalmente novo, marcando um importantíssimo momento de mudança na relação com o que se tem e o que se faz.

Com sinais cada vez mais alarmantes, amplamente disseminados nos últimos dois anos pela mídia, sob o efeito do furacão Katrina, essa crise ambiental aumenta a pressão para uma mudança no modo de vermos a vida e amplia a consciência de que estamos seguindo todos para um só destino, sejamos ricos ou pobres, negros ou brancos, cristãos, judeus, budistas ou muçulmanos.

Estamos pagando o preço pelo hiperconsumismo, submersos em paradoxos sem precedentes na história: esse é o mundo em que 500 mil crianças morrem de fome ao mesmo tempo em que 500 mil pessoas morrem de doenças causadas pela obesidade nos Estados Unidos. Doenças por excessos alimentares convivem com a fome e a miséria; o hiperconsumismo de 20% da população gera a abstinência dos outros 80%. Pensamos que a natureza nos pertencia. Tiramos quase tudo dela, nossas mentes foram colonizadas pelo signo do consumo, fomos coroados como os reis do mercado, e agora a própria natureza nos alerta com seus gritos sistêmicos de exaustão, depredada de seus recursos e sufocada pelo aquecimento global. Começamos a perceber que nós pertencemos e devemos a ela.

Com o fio de vida que ainda nos resta, vemos testada nossa inteligência: seremos capazes de evoluir, como gestores, educadores, comunicadores, consumidores e cidadãos planetários?

O lançamento da tradução para o português do livro Dinheiro e Vida, de Joe Dominguez e Vicki Robin, vem celebrar essa época de redefinições estruturais com incomparável clareza e impressionante fundamentação, trazendo propostas concretas de como podemos viver mais e melhor apenas (e não apenas) com o suficiente. Este livro é um presente para todos os brasileiros em busca de uma vida mais sustentável e conscientes de suas responsabilidades com relação à preservação do planeta. A edição em português chega em boa hora, coroando esse momento em que o país se destaca pelas iniciativas pioneiras no desenvolvimento de energias renováveis e tecnologias sociais. Assistimos a um consumidor brasileiro em franca evolução. De acordo com recente pesquisa do Instituto Akatu, 37% dos consumidores brasileiros são conscientes e estão dispostos a pagar mais por produtos não-nocivos ao meio ambiente

Ao publicar esta obra em português, a Editora Cultrix está presenteando toda a sociedade brasileira, que assiste à falência dos velhos sistemas e busca a felicidade plena, que não é aquela criada pelos sofisticados mecanismos do marketing. Aqueles que se sentem aprisionados pelas posses descartáveis, pelos muros de concreto dos bunkers habitacionais e pelos carros blindados terão nessa leitura um verdadeiro oásis de alternativas.

Mesmo para os que ainda não despertaram para a necessidade de mudar, a leitura dificilmente passa despercebida. Ela prende, captura e seduz pela precisão com que tece a lógica dos novos valores. Em vez de adotar o confronto, os autores, com agudeza e sensibilidade, pegam na mão de quem se deixar levar por orientações práticas sobre o viver simples. Qualidade de vida é o que importa.

Eis aqui um manual completo de reengenharia da vida. Com base em todas as experiências vividas e legitimadas por suas próprias mudanças, Joe Dominguez e Vicki Robin nos oferecem um roteiro precioso para reorientarmos nossa relação com o dinheiro. A proposta não é renegá-lo e sim transcendê-lo como instrumento de convivência e de mudança de atitudes. Não se trata de renunciar ao ter, mas de privilegiar o ser.

O viver simples tem sido a feliz opção de Vicki Robbin e de um crescente número de pessoas que estão tentando se libertar dos excessos, que geram tédio, obesidade, stress. Os adeptos do movimento da Simplicidade Voluntária têm em Vicki Robbin a profetisa da vida simples.

Em sua visita ao Brasil, em 2005, Vicki me contagiou. Aprendi com ela que o viver simples não é apenas uma escolha, mas uma nova maneira de se relacionar com as suas potencialidades criativas. É também exercitar a compaixão por bilhões de pessoas à margem da economia, sem recursos, sem o mínimo necessário.

A vontade de ler seu livro, best-seller que já foi adquirido por mais de 1 milhão de pessoas nos Estados Unidos, foi imediata. Propus a publicação em português para a Editora Cultrix, que, sempre comprometida com o novo pensamento, logo viu o valor da obra.

Despoluir-se dos excessos e viver bem com o suficiente, valorizar a qualidade e não a quantidade, mais do que receitas, são opções conscientes. O que fazer já sabemos. Resta saber como fazer, por meio de uma leitura agradável e transformadora como esta.

(*) Rosa Alegria é futurista, pesquisadora de tendências, comunicóloga e ativista de midia. É diretora de Conteúdo do Mercado Ético.

Texto original publicado como Introdução à versão brasileira do livro Dinheiro e Vida de autoria de Vicki Robin e Joe Dominguez, lançado recentemente pela Editora Cultrix.

Este artigo também foi publicado pelo site do Mercado Ético e pela da Agência Envolverde.

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