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06.10.11 às 17:41

“Brasileiros ignoram a responsabilidade que têm sobre o que comem”

“É preciso uma educação sistêmica por uma alimentação equilibrada, sem apontar vilões” diz a antropóloga e pesquisadora em consumo Lívia Barbosa
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A questão da adequação da dieta do brasileiro passa por uma reeducação da sociedade como um todo, considerando, inclusive, questões culturais. É o que defende a antropóloga Lívia Barbosa, diretora de pesquisa do Centro de Altos Estudos da Propaganda e Marketing da Escola Superior de Propaganda e Marketing (CAEPM/ESPM), doutora em antropologia social e integrante do Conselho Acadêmico do Instituto Akatu. Ela conversou com o Akatu sobre a Análise de Consumo Alimentar Pessoal no Brasil, da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2008-2009, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Veja os principais trechos da entrevista:

Instituto Akatu – Segundo a pesquisa, mais de 90% dos brasileiros consomem frutas, verduras e legumes abaixo do necessário. Não é contraditório que em um país como o Brasil, onde existe uma intensa produção de alimentos, se registre este déficit?
Lívia Barbosa – É fundamentalmente uma questão cultural, já que para o brasileiro em geral, uma boa refeição é aquela que tem necessariamente carboidrato e carne. A ideia de comer bem para o brasileiro está fortemente ligada a ficar de estômago cheio. Ele quer ficar saciado, e isso se consegue com carboidratos e carnes. Frutas, legumes e verduras não respondem a essa demanda mais generalizada.

Instituto Akatu – Que soluções podem ser adotadas para se buscar uma alimentação mais balanceada?
Lívia Barbosa – Cabem políticas públicas de educação ao consumidor, sem dúvida, mas é preciso encarar o problema de uma maneira sistêmica, envolvendo todos, a sociedade, as empresas produtoras e o governo, este último legislando e fiscalizando o cumprimento das normas que forem estabelecidas. Ou seja, não adianta muito focalizar as ações, apontando vilões. Para se ter uma ideia do erro em apontar vilões, hoje, os alimentos processados respondem por 22% do total dos produtos oferecidos pelo mercado brasileiro, o que até é um dado razoável, se comparado com países europeus e com os Estados Unidos da América. É muito mais fácil focalizar o problema nas empresas que oferecem esses produtos do que educar a população a consumi-los de forma adequada, balanceando a dieta com os restantes 80% de alimentos não processados.

Instituto Akatu – Parece muito mais fácil e prático para o consumidor, pelo menos o das grandes cidades, comprar alimentos processados como biscoito, pizzas, refrigerantes e outros pratos prontos do que, por exemplo, ir à feira, comprar os alimentos, transportá-los para casa, fazer o próprio suco em casa etc. Não parece uma “luta desigual”?
Lívia Barbosa – Não é por ai. Hoje, você entra nos supermercados dessas mesmas cidades, é possível encontrar frutas descascadas, cortadas em pedaços, prontas para serem consumidas, o que facilita o transporte e de certa forma dá praticidade para comer na rua também. Tem também as pequenas combinações de saladas semiprontas e por ai vai. Tudo isso fica disponível junto a produtos processados. Veja que nas feiras, onde se vendem, pelo menos a princípio, produtos em seu estado natural, os pasteis fazem muito sucesso também. Não há desigualdade de oferta a meu ver, pelo menos no sentido que você aponta, mas sim um grupo de alimentos que é mais demandado que outro. O que não deveria acontecer é as pessoas ignorarem a responsabilidade que têm sobre aquilo que colocam na boca e acharem que simplesmente foram influenciadas pela publicidade, que o ritmo de vida ou preços dos produtos as obriga a comer os processados ou que falta tempo ou estrutura para preparar uma refeição adequada em casa.

Instituto Akatu – Os programas de educação ao consumidor devem seguir essa linha então, de fazer com que as pessoas entendam a necessidade de se esforçar para se alimentar melhor?
Lívia Barbosa – Devem focar na conscientização do consumidor, mas como já me referi antes, de forma sistêmica. O problema é que temos hoje um sistema estabelecido que individualiza os vilões, que em geral são as empresas, por ser o lado mais visível da questão. Isso leva ao que eu chamo de “soma zero”. As ações devem ser sistêmicas, educar na escola e em casa, além de criar normas para garantir a implementação do que for decidido, tudo sem radicalidades. É preciso fazer as pessoas entenderem que os alimentos processados não devem ser ingeridos todos os dias e nem devem substituir uma dieta equilibrada. Mas por outro lado, é fundamental a exemplaridade, não há educação que resista a pai e mãe comendo biscoitos e tomando refrigerante todos os dias em frente à televisão.

Instituto Akatu –Talvez por isso a questão pareça ser mais séria entre os jovens?
Lívia Barbosa – Eles [os jovens] são os que mais se dispõem a experimentar. Mas, por outro lado, hoje eles gozam de uma autonomia muito grande dentro de casa, na família. Eles decidem o que vão comer da mesma forma que decidem que roupas vão vestir e todo mundo acha engraçado. O estatuto da refeição também mudou. Hoje refeição é lazer e não necessariamente um momento para atender uma demanda do organismo humano. Fazemos questão de comer fora de casa e os jovens, em especial, fazem isso muito mais, explorando a liberdade que têm. Esse é um dado da educação contemporânea que tem suas consequências, ou seja, por isso eles estão mais susceptíveis a má alimentação. Reeducar dá muito trabalho, especialmente quando se trata de reeducar todo o sistema alimentar e com implicações culturais.

Instituto Akatu – A combinação do arroz com feijão se estabeleceu como um dos mais tradicionais pratos brasileiros. Por outro lado, segundo o último POF, com o aumento da renda da pessoa, tende a cair o consumo dessa combinação, que é saudável. O que explicaria isso?
Lívia Barbosa – A meu ver, isso reflete o fato de que as pessoas estão comendo o que antes não tinham acesso, limitados pela questão financeira e o problema não está ai. O problema se dá com a substituição de uma dieta equilibrada por aquilo que achamos saboroso. Aliás, esse é um fator pouco levantado quando se fala em dieta equilibrada. Culturalmente, esse é um dado muito forte e que influencia bastante nas escolhas de consumo.

Instituto Akatu – Escolhemos pelo sabor então?
Lívia Barbosa – Consideramos, com maior relevância, também o sabor. A sustança é outro objetivo que se busca na hora das refeições.

Instituto Akatu – O mesmo estudo também revela que há ausência de grãos integrais e hortaliças no prato dos brasileiros com renda menor. Por que isso acontece se esses alimentos não são tão caros?
Lívia Barbosa – Essa pergunta nos remete à primeira [“para o brasileiro, uma boa refeição é aquela que tem, necessariamente, carboidrato e carne”]. O brasileiro de baixa renda ainda busca o imediatismo quando se senta à mesa. E, na verdade, não há uma diferença significativa entre os hábitos alimentares dos ricos e dos pobres. É claro que as diferença apontadas numericamente pelas pesquisas chamam atenção, mas há uma base comportamental muito parecida entre os dois grupos. Os mais ricos também procuram se garantir com o básico, a mistura de que já falamos, com uma pequena variedade, porque podem [financeiramente].

Instituto Akatu – Mas se a questão cultural influencia, por que, por outro lado, na dieta dos que têm salário maior, há excesso de doces, pizzas e refrigerantes?
Lívia Barbosa – É a outra face da mesma moeda. Há dois caminhos que ajudam a entender essa questão. A primeira diz respeito ao fato de a renda maior oferecer mais possibilidades de variar o cardápio, portanto, há maior diversidade no que se come e não necessariamente se deixa o arroz e feijão de lado. A segunda nos remete a outra questão cultural. Ou seja, com salário maior, as pessoas se dão ao privilégio de comer bem. Mas o que é comer bem? Para o brasileiro em geral é comer o que ele considera saboroso, e o saboroso não é necessariamente o mais saudável. Mais ainda, o saudável, não é gostoso, essa ideia está enraizada culturalmente no Brasil. O que o brasileiro define como gostoso muitas vezes não inclui frutas, legumes e verduras.

Instituto Akatu – De tempos em tempos, são “eleitos” (pelos cientistas e difundidos pela mídia) diferentes tipos de alimentos considerados vilões da boa alimentação, o que confunde os consumidores finais. Qual seria a forma correta de lidar com essa questão?
Lívia Barbosa – A imprensa precisa dar mais espaço os pesquisadores para que eles possam explicar melhor esses assuntos, que são bastante complexos e fundamentais para massificação da qualidade de vida. Mas, infelizmente, esse tema não ganha simpatia da mídia. Quando isso acontece, vemos aquelas manchetes do tipo “beba quantidade ´x´ do suco de cenoura e evite o câncer”. Isso é desinformação, leva ao erro, ao equívoco. Esses estudos são complexos, com imensas variáveis. Mas também tende a crescer o número de publicações e programas [de TV] voltados a essa questão, em que elas são expostas com mais lucidez. Mas acho fundamental tratar desse assunto na mídia tradicional de forma correta.

Instituto Akatu – Segundo dados da FAO/ONU, cerca de um terço dos alimentos produzidos todos os anos no mundo é desperdiçado. O que falta para o consumo mais racional dos alimentos?
Lívia Barbosa – Os brasileiros começam a entender o conceito de sustentabilidade, mas muito mais sob o ponto de vista da preservação ambiental. Ainda é difícil as pessoas levarem a sustentabilidade para o universo doméstico. Perde-se muita comida na hora de preparação dos alimentos, porque qualquer verdura que não estiver com aparência minimamente afetada não serve; perde-se muito na geladeira porque se compra e se prepara mais do que o necessário e, em geral, não se sabe reaproveitar. No final, tudo vira lixo. O desafio, portanto, é trazer e compartilhar a questão da sustentabilidade com as donas de casa, mostrar para elas seu papel nessa busca.

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